Em Abril de 2004 escrevi:
"Sempre achei interessante o recurso ideológico à ideia de Estado de Natureza e ao Direito Natural. É engraçado ver Rousseau defender um estado de natureza em que o Homem vivia numa harmonia e igualitarismo idealizados, situação que se havia perdido pela introdução da propriedade (o mal de todos os males), gerando a desigualdade e com ela a infelicidade dos Homens, propondo o seu contrato social (que não abole a propriedade privada, mas condiciona-a) como forma de reposicionar esse equilíbrio social perdido. No contexto do século XVIII, eram ideias que respondiam aos anseios de uma pequena/média burguesia francesa.
Não menos engraçado é ver Thomas Hobbes a defender um Estado de Natureza radicalmente diferente, onde o Homem vive em completa anarquia e conflito, movido pelo egoísmo, onde o “Homem é o lobo do Homem”, sendo a sua organização em sociedade dependente de um poder centralizado (concentração de poderes através de um contrato social) que o civilize e lhe permita viver em harmonia e atingir a paz e a felicidade. Uma legitimação clara do poder absoluto e uma inequívoca contestação do parlamentarismo em consolidação na sociedade inglesa do século XVII.
As ideias de que o Homem é por natureza bom, e a sociedade o corrompeu, ou que o Homem é por natureza mau (animal) e que a organização em sociedade o civilizou e lhe limou (mas não aboliu) essa animalidade, acabam por ser as duas faces da mesma moeda, que remetem para uma ideia de essência humana, algo ahistórico, de que nos podemos afastar, mas a que poderemos sempre voltar.
O debate em torno da universidade por vezes lembra-me esta situação. Estará a universidade apenas afastada, perdida, do seu estado de natureza “bom”, necessitada de um contrato social que permita salva-la e repor-lhe a Harmonia que idealizamos para uma comunidade que se rege por princípios éticos, de mérito e de qualidade inquestionáveis (onde o branco, a pureza e o conhecimento se associam, na figura de Cândidos não tocados pela maldade)? Ou, pelo contrário, as situações que existem são o melhor “contrato” que conseguimos fazer para limar, para domesticar, os rasgos de animalidade hobbesiana que caracterizarão a natureza humana?
Enfim, a comparação é puro divertimento e mera associação de ideias, mas pode dar que pensar."
Os contornos da actualidade arqueológica levam-me a pensar, numa perpectiva muito pessoal (que sempre foi a minha), que vivemos tempos "hobbesianos" sob bandeiras pseudo "rousseauanas". "Centralistas" (ou os esperançados em beneficiar dos favores do centralismo), esquecendo o que caracteriza os seus espaços domésticos, apelidam os restantes de "canibais". Pretendentes a "Rei Sol" colocam estrategicamente os seus peões, na esperança de amanhãs que cantem queridos líderes. Outros declaradamente se confessam "pecadores" por participarem de uma dinâmica colectiva liberalizadora, para, sem deixar de recolher os benefícos por ela proporcionados, se declararem apóstolos de associativismos ditos "desinteressados" e tocados pela divina compreensão do bem público.
Mas se a hipocrisia é geral e a teorização sempre interessada, como avaliar e optar? Olhando simplesmente ao que se faz. É ainda a melhor forma de avaliar. Olhem ao que cada um faz.
António Carlos Valera
Situação transversal a todas as áreas do conhecimento e da investigação em Portugal. As universidades são e sempre foram uma "feira de vaidades" ou "feiras de egos".
ResponderEliminarA expressao "canibal" utilizada para apelidar uma arqueologia realizada em ambito empresarial por elementos ligados a uma instituição universitaria em determinado coloquio é, na melhor das hipoteses, uma expressao infeliz. Infeliz desde logo porque esquece o enorme avanço ao conhecimento arqueológico proporcionado pela arqueologia feita em ambito empresarial. Infeliz e insultuosa porque faz tabua rasa a uma serie de profissionais de arqueologia que trabalham em este ambito e que realizam um optimo trabalho. Mas infeliz principalmente porque grande parte destas instituições realiza trabalhos que podem ser enquadrados dentro de uma prespectiva empresarial e que, não raras vezes, utiliza m-d-o voluntaria. bem dizia frei Tomas....