A Arqueologia é, para mim, uma Ciência Social. Digo para mim porque não é seguro que o seja para vários arqueólogos em Portugal.
Contudo, não é por ser Ciência nem Social que a Arqueologia, no que se refere às suas dimensões profissionais e institucionais, terá particularidades que a distingam de forma profunda de outras. A Sociologia, a Antropologia, a Psicologia (social), a Geografia (humana), a História e tantos outros ramos das Humanidades e das Ciências Sociais têm os seus profissionais, o seu mercado, as suas diversas instituições (públicas e privadas) de prática profissional.
Mas diria que algo de comum a várias destas disciplinas, nas suas dimensões de actividade profissional no mercado, é produzirem conhecimento, para além de simplesmente o aplicarem. Se actuam naquilo que poderemos considerar como parte integrante do sector terciário, portanto dos serviços, a sua “produção”não se esgota num simples serviço, mas deve “produzir” um produto chamado “conhecimento”, que só por ser imaterial escapa aos sectores primários e secundários.
Brincando, ou talvez não, poderíamos dizer que, numa versão positivista, a Arqueologia extrai conhecimento das fontes arqueológicas (o que a poderia fazer integrar um sector primário, extractivo) ou que, numa perspectiva mais pós-moderna, constrói conhecimento na relação que mantém com os vestígios arqueológicos (o que a colocaria num sector secundário, transformador). Mas a imaterialidade da sua produção coloca-a no terciário sector dos serviços. E aqui podem surgir alguns equívocos.
Se é verdade que ao organizar um circuito arqueológico, ao restaurar património arqueológico ou ao resolver um problema de minimização a um promotor de um empreendimento, o arqueólogo (e a instituição que o enquadra) presta um serviço, não é menos verdade que a prestação desse serviço deve incorporar uma produção de conhecimento. O serviço não é simplesmente montar o circuito ou escavar o sítio afectado pela estrada. O serviço é, através disso, produzir e transmitir conhecimento.
Mas esse conhecimento tem que ser útil. Como o do sociólogo que faz e analisa inquéritos, estabelece tendências, interpreta anseios, gera consciencializações, e com isso informa opções e decisões de indivíduos ou colectivos. O mesmo se deverá passar com actividade arqueológica: produzir um conhecimento útil e não simplesmente desenvolver uma prática técnica que responde a um qualquer normativo e por aí se ficar.
O que nos conduz à utilidade do conhecimento arqueológico e à pergunta a quem ele serve. É útil aos processos do próprio desenvolvimento disciplinar. Esta é a sua dimensão tautológica: a Arqueologia pela Arqueologia e para a Arqueologia. Todas as ciências a têm e a todas é necessária. Mas qualquer ciência tem uma utilidade social, aquela que mais a justifica (e sobretudo justifica os investimentos que recebe).
Desta linha de pensamento decorre que no caso dos processos de minimização de impactes sobre património arqueológico o serviço prestado não se esgota em “ajudar” um promotor a resolver um problema que o normativo lhe impõe, mas que nesse “ajudar” se tem que produzir conhecimento socialmente útil, que está para além dos interesses imediatos desse promotor, mas a quem também deverá ser demonstrada a utilidade.
De facto, um conhecimento só pode ser socialmente (ou particularmente) útil se for socialmente (ou particularmente) conhecido. E só sendo socialmente (ou particularmente) conhecido e reconhecidamente útil, será socialmente (e particularmente) valorizado: o conhecimento e quem o produz.
Ora o conhecimento produzido pela Arqueologia enquadra-se no âmbito das ciências históricas e na dimensão sociológica da produção de património. Significa que, nestes trabalhos de minimização (e ao contrário do médico que trata o doente ou do mecânico que repara o carro), o serviço é sempre prestado a vários clientes: a um mais particular (que o procura por imposição normativa) e a outros colectivos e diversificados (a comunidade científica disciplinar, as comunidades que poderão ser mais directamente ligadas ao território e ao seu património, ou a um público geral a várias escalas.
Um primeiro problema é que apenas o primeiro cliente paga. E porquê? Porque é ele que destrói o que é visto como bem colectivo. É o princípio do “poluidor pagador”. Mas quem se propõe resolver a “poluição” e quem exige e deve zelar porque ela seja bem resolvida não podem esquecer os “outros clientes”, pois são precisamente eles que justificam o tal princípio do poluidor pagador.
Um segundo problema é que muitos desses outros clientes não sabem que o são (ou que o podem ser) e por isso raramente são exigentes. Por isso talvez não fosse má ideia começar a integrar práticas nos processos de minimização que enquadrem no “serviço a prestar” aquilo a que se chama educação patrimonial: que significa simplesmente levar esses outros “clientes” a serem “clientes” do conhecimento produzido pela Arqueologia; a aprenderem a apreciá-lo, a valorizá-lo e a conseguirem destrinçar o que é socialmente útil do trivial e inútil.
Seria uma forma de afirmar a Arqueologia e os seus profissionais na sociedade e, simultaneamente, de os responsabilizar pelo nível daquilo que produzem (ou deveriam produzir): narrativas socialmente actuantes, potenciadoras de mudança ou de resistência, geradoras de consciência e de identidade, de “alargamento” intelectual e desenvolvimento de emoções e de racionalidade crítica. Ocorre-me dizer que é isso que distingue o arquitecto do empreiteiro. Sem desprimor para o segundo, eu diria que uma escavação arqueológica deve ser “um projecto de arquitectura” e não uma simples empreitada.
António Valera