A integração, em equipas
de arqueologia, de especialistas de outras áreas científicas pode ser
fundamental. Os casos em que a arqueologia se cruza com a antropologia biológica,
é disso um bom exemplo. No próprio Regulamento de Trabalhos Arqueológicos (RTA),
a legislação que regula a arqueologia em Portugal, existe um articulado
específico sobre esta matéria, considerando que (e muito bem) devem ser
integrados especialistas daquele domínio nas equipas de escavação arqueológica
de contextos funerários.
Recentemente, de forma surpreendente e sem qualquer debate
prévio com a esmagadora dos arqueólogos portugueses, a DGPC – Direcção Geral do
Património Cultural decidiu alterar a forma de intervencionar contextos arqueológicos
com restos humanos. Para tanto, divulgou um documento (Circular*), através do
qual são realizadas alterações profundas à legislação em vigor para a arqueologia,
a coberto de uma suposta particularização de alguns procedimentos definidos no
RTA.
Tenho uma opinião muito clara sobre este documento e sobre a
forma como foi elaborado e divulgado. Sendo muito sintético, direi apenas o
seguinte sobre a já célebre “Circular de Antropologia” da DGPC:
- em relação à forma, esta circular é ilegal porque é proibido emitir actos normativos (que não são
leis) que interpretem, preencham lacunas ou complementem leis ou decretos-lei.
Ou seja, a DGPC não tem competências
para emitir as normas que integram esta circular, nem pode exigir algo que não
está no RTA ou que contradiz o que ali está definido;
- em relação ao conteúdo e ao atribuir a especialistas de
antropologia biológica a responsabilidade pela escavação de contextos com
restos humanos, esta circular viola em
absoluto os princípios do RTA que definem que cabe a arqueólogos a direcção de todas
as categorias de trabalhos arqueológicos, incluindo aqueles que se realizem em
contextos com restos humanos.
Com esta circular, a DGPC altera em absoluto alguns do pressupostos
legais em vigor e atribui a especialistas, que não estão preparados para tal,
responsabilidades dos arqueólogos, únicos profissionais formados para dirigir
escavações arqueológicas. Refira-se que, para além do aspecto legal e
corporativo, nenhum nível de formação em antropologia biológica ministrado em
Portugal inclui competências em arqueologia. Assim sendo, como é possível
atribuir responsabilidades a quem não tem formação específica, retirando-as a
quem é devidamente formado para esse efeito?
Independentemente de eventuais e virtuosas intenções, a “Circular
de Antropologia” foi um lamentável e grosseiro erro cometido pela tutela do
património arqueológico. Esse erro deve ser assumido e reparado através da
revogação do acto administrativo que lhe está inerente.
Talvez depois, de forma serena e em diálogo com os
profissionais de arqueologia, seja possível iniciar um processo que permita
incrementar a qualidade das intervenções arqueológicas em contextos com restos
humanos, nos quais a participação de antropólogos é, evidentemente,
fundamental.
Se nada for feito, estaremos mais uma vez a contribuir para
a implementação de práticas que, através da desresponsabilização dos
arqueólogos, contribuirão para a defesa dos mais incompetentes e daqueles que assentam
a sua acção profissional em baixos níveis de qualidade.
* "Circular de Antropologia da DGPC"
* "Circular de Antropologia da DGPC"
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